(artigo publicado no #34 do Jornal Mapa, Maio/Julhode 2022, disponível aqui)

Em 1990, tinha o muro caído pouco antes, um grupo de anarquistas provocou a ira das autoridades fazendo circular pelas praças da «antiga» Alemanha Oriental uma estátua, em pasta de papel, a representar um fugitivo. Chamaram-lhe «Monumento ao desertor das duas guerras mundiais» e tinha como legenda «Para quem se recusou a matar o seu semelhante». Nos anos seguintes, também noutros países, surgiram vários monumentos a homenagear os desertores e a desafiar as estátuas oficiais dedicadas aos «soldados desconhecidos» das grandes guerras que se erigiram um pouco por todo o mundo. Assim se transformou num gesto heróico algo que todas as nações procuraram apresentar como um dos exemplos máximos de cobardia e traição.

Por trás destas acções, está uma longa história de desobediência. Nas muitas guerras que atravessaram todo o século XX, foram milhares os que se recusaram a obedecer a ordens e a participar na execução de milhões de pessoas, geralmente em nome de valores e fins que os grandes líderes fizeram crer ser os seus, mas que não eram mais do que disputas por interesses que só beneficiavam uns poucos que não saíam dos seus gabinetes. Na I Guerra Mundial, uma parte daqueles que compunham as fileiras das correntes antiautoritárias recusaram-se a tomar partido pelos seus países e alianças militares. Em Portugal, a propaganda e as campanhas antimilitaristas promovidas pelos anarquistas estiveram entre as acções que mais assustaram os governos e elites nacionais, disseminando apelos à deserção, à indisciplina e à sabotagem de material militar. Como sublinhava um editorial do jornal anarco-sindicalista A Batalha, em 1926, o Estado arrancou «milhares de indivíduos que viviam do trabalho de suas utilíssimas profissões» para «fabricar homens capazes de assassinar». Estes actos de dissenso repetiram-se na II Guerra Mundial. Em 1945, quatro anarquistas, autores do jornal War Commentary, entre eles Vernon Richards e Marie Louise Berneri, eram detidos em Inglaterra, acusados de semearem a indisciplina e a deserção nas forças militares britânicas. Entre o material apreendido, estava um poema, “Fight! What for?”, em que se dizia: “You are wanted for the Army,/ Do you know what you’ll have to do?/ Just murder to save your country/ From men who are workers, like you.”

Nesta recusa, não estava apenas em causa um pacifismo idílico ou gesto cobarde de rendição, como alguns insinuam agora sobre quem exige a paz. Entre os “crimes” apontados aos membros do War Commentary, estavam os apelos que faziam para que os trabalhadores não largassem as armas, mas que as usassem para a acção revolucionária. E sempre que foi necessário, aqueles que “carregam um mundo novo nos seus corações”, como dizia Buenaventura Durruti, não hesitaram em ocupar a linha da frente do combate, contra a tirania soviética, contra os poderes ditatoriais e contra o imperialismo ocidental, como aconteceu na Guerra Civil de Espanha ou como fez Nestor Makhno na Ucrânia. Estes combatentes seguiam o seu próprio caminho e não na direcção para que queriam empurrá-los. Lutavam por um mundo diferente, sem deuses nem amos, e sabiam que o inimigo estava em qualquer dos campos ideológicos que se apresentasse como a única opção possível e a quisesse impor pela força. A “igualdade” e a “liberdade” que os seus inimigos diziam defender não era a sua.

A música teve sempre um papel fundamental na construção destas resistências. Pouco tempo depois de duas bombas nucleares terem caído sobre Hiroshima e Nagasaki, Gordon Dean, presidente do Comité de Energia Atómica dos Estados Unidos da América, dizia com orgulho que “hoje, os Estados Unidos afirmam-se perante o mundo com a tocha da liberdade numa mão e a bomba atómica na outra”. Vernon Partlow, um jornalista norte-americano, não partilhava o mesmo entusiasmo, e escreveu aquela que foi, provavelmente, a primeira música antinuclear: “Old Man Atom”. Nela expunha a igualdade que se escondia nos desígnios destes idiotas: “We hold this truth to be self-evident: / That all men may be cremated equal”. A tocha da liberdade rapidamente proibiu a canção. Afinal, só eram livres aqueles que se deixassem arregimentar e não cedessem a heresias antipatrióticas.

Em Inglaterra, no final dos anos 70, bandas como os Crass, pegavam na “anarquia” do golpe publicitário dos moribundos Sex Pistols e transformavam-na num movimento que desejava ir além das manchetes jornalísticas e queria ser muito mais do que uma brincadeira para assustar velhinhas ou perturbar o sossego dos lares britânicos. Nascia o anarcopunk e um novo capítulo na longa guerra que tinha como fim a destruição do capital e dos Estados. Bandas, fanzines e okupas germinaram por todo o país para desafiar a sonolência da aparente inevitabilidade que os arsenais nucleares cultivavam. Entre essas bandas, poucas captaram tão vividamente o imaginário da época, pelas suas letras cinematográficas, como os Lack of Knowledge, uma das bandas da Crass Records. Nas suas letras, o sujeito era, geralmente, um indivíduo anónimo, “o último humano na Europa”, a tropeçar em destroços de vidas espalhados por ruas silenciadas (como em “Radioactive man”) ou perante um presente ameaçado pela iminência de um apocalipse nuclear e pelo peso dos céus de mercúrio vermelho prestes a abater-se sobre nós. Estas imagens sombrias e o som inquietante que as acompanhava, mais do que a combatividade e a raiva de bandas como os Crass, pareciam evocar o fatalismo e o negrume de bandas como Joy Division. Mas as cores que pintavam eram aquelas que vemos agora ressurgir no horizonte e que alimentavam a fúria das bandas que procuravam desafiar a ordem da guerra fria. No catálogo da Crass Records, não deve ter existido uma banda que tenha escapado ao escrutínio das autoridades e das secretas britânicas. Crass, em particular, foram interrogados, perseguidos e caricaturados em retratos mediáticos, acções policiais e até em debates parlamentares. Um dos momentos altos foi o caso que ficou conhecido como Thatchergate, uma gravação forjada de uma conversa telefónica entre Ronald Reagan e Margaret Thatcher, mas baseada num leak real de declarações da dama-de-ferro inglesa, em que esta revelava que o navio de guerra HMS Sheffield tinha sido propositadamente sacrificado para fazer escalar a guerra das Malvinas e em que ambos partilhavam a intenção de fazer da Europa uma frente de batalha nuclear contra a União Soviética.

Partilho estas histórias porque, em todas elas, encontrámos uma guerra diferente daquelas em que nos querem obrigar a participar, mesmo que seja apenas como espectadores ou como soldados das redes sociais. O papel daqueles que se recusam a enfileirar nos exércitos de Estados e do capital, foi e é, antes de mais, o de denunciar as farsas patrióticas e as manipulações demagógicas dos grandes líderes que nos chantageiam com o «se não estás connosco estás contra nós». A barricada onde nos situamos é das pessoas comuns e anónimas, sejam elas russas ou ucranianas, que pagam sempre o preço das decisões de quem se senta nos seus gabinetes e que só contam para embelezar discursos parlamentares e para os defender nas horas de aperto. Para quem decide estas guerras, sempre fomos carne para canhão, vidas descartáveis e sem sentido.

Esta guerra não é a primeira, nem é diferente de todas as guerras que conhecemos. Mas diz muito sobre o momento que vivemos que muitos daqueles que reclamam ideais emancipatórios sintam, hoje, perante uma guerra imperialista, a obrigação de se situarem de um dos lados da contenda. Numa guerra imperialista, não há, nunca houve, um império melhor do que outro – tivesse ele na sua bandeira uma foice e um martelo ou um cifrão, ou clamasse ele defender os nossos “valores” e “estilo de vida”. O nosso papel continua a ser o de traidores das pátrias e impérios e o de detractores das ideias de «liberdade», «igualdade» e de «Europa» em que nunca coubemos.